segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O BATOM

Eu estava tentando ler, mas de repente ela invadiu minha memória e não saiu mais. Tive que deixar o livro de lado e falar sobre aquela recordação que pedia insistentemente para ser escrita. Cursávamos o Ensino Médio. Eu me recuso a dizer que ano era. Não que isso tenha muita importância, porque uma história recontada sempre carrega um tom de ficção. 

Eu era adolescente. Àquela época, ser adolescente talvez fosse mais fácil porque ainda estávamos livres das escovas de chocolate, marroquinas, inteligente, etc. Naquele tempo, chocolate era um doce com o qual nos empanturrávamos sem culpa; marroquina era uma mulher nascida em algum lugar chamado Marrocos; e inteligente era um adjetivo que usávamos para falar dos nerds da classe (nunca na frente deles, é claro). 


Enfim, são as possibilidades da língua e da tecnologia estética avançada. Hoje as pessoas aprendem línguas estrangeiras em um único, ou melhor, em vários frascos de shampoo: “For oil roots and dry ends”. E o que dizer dos cremes faciais? “Clinical advanced plus – oil control”; “Soin de comblement anti-rides fermeté intensif – formule reforcée”. Quem precisa pagar curso de línguas? Bom, eu estava falando da minha adolescência. Havia na turma uma garota bem diferente de mim. Na verdade, até hoje eu não sei o quanto éramos diferentes. Eu tinha o cabelo da cor de um cesto de palha envernizado: nem claro, nem escuro. A textura também era de palha. Era um crespo quebradiço cujos cacos caíam sobre meus ombros. Nosso uniforme do colégio era uma camisa branca e, em intervalos regulares, eu batia a mão nos ombros para tirar o acúmulo de pedaços de cabelo. Aprendi a fazer isso de forma quase imperceptível, pelo menos era o que eu achava.

Ela tinha os cabelos cacheados, de um castanho reluzente, que desciam pelo meio das costas, inquebráveis. Naquela época eu morava com minha avó que, com seus 78 anos, era muito pobre e tínhamos que fazer milagre para passar o mês. Ela não parecia ser rica, mas dava pra ver que tinha a pele nutrida por todas aquelas vitaminas que dizem fazer bem pras queratinas e elastinas. Meu olhar era sempre embaçado, triste, baixo e embargado por uma lágrima iminente, vesúvica. Eu me parecia com Macabéa, a personagem de Clarice Lispector em A Hora da Estrela, “tinha um olhar de quem tem uma asa ferida”. Seu rosto era marcado por olhos vivos, ávidos, brilhantes e sorridentes. Os meus lábios eram grossos, como aqueles das atrizes famosas, que dizem ser bom de beijar, tanto que as mulheres pagam caro pra ter iguais. Apesar disso, eram pálidos e denunciavam uma latente anemia. Os dela eram mais finos, mas irrequietos, falantes. Sempre com algum colorido que puxava pros tons marrons. Todas as vezes que olhava pra ela, minha visão era trespassada pela linha branca de seus dentes que estavam sempre à mostra num sorriso largo. Meu nariz era calombudo, o dela, milimetricamente desenhado. Ela possuía já naquela idade os ardis da mais sedutora feminilidade. Sabia fazer caras e bocas para encantar os meninos. O que na literatura balzaquiana é chamado de “coqueteria”. Eu era seca, não só de corpo, mas de toda e qualquer mascarada de feminilidade. Não éramos amigas, nem inimigas. 

Mas um dia aconteceu um episódio que marcou profundamente os meus dias. A cada bimestre era publicado o jornalzinho do grêmio estudantil. Nele havia uma seção de recadinhos românticos e, em uma das publicações, soube que havia um recado pra mim. Foi aí que meu coração deu pinotes, senti pela primeira vez que minhas maçãs do rosto estavam coradas. Um fiapo de saúde desenhou-se em minha face seca. A palpitação foi maior do que a que eu sentia ao avistar Henrique, o garoto do terceiro ano de quem eu gostava. Mas era um gostar com sabor de chá morno porque eu não achava que um dia ele pudesse sequer me olhar, e foi por ter acreditado sempre nessa impossibilidade que senti o peito arrebentando de expectativa, pois pensei que pudesse ser dele. Desci as escadarias correndo para alcançar o mural do grêmio que parecia estar a léguas de mim. Quando cheguei, deparei-me com um recado que tive de ler e reler:

Oi Selminha!

Sou louco por você, a garota mais bonita da escola.

Eu me amarro no seu cheirinho ardido e me perderia nos seus cabelos sarará.

Assinado: Admirador Secreto.


O chão rodou sob meus pés, as luzes ficaram cem vezes mais fortes a ponto de quase me cegarem. Saí correndo dali sem saber minimamente pra onde ia. Os meus lábios pálidos tremiam e o ar, em turbulência por causa da minha corrida, fazia gelar as lágrimas que corriam horizontalmente no meu rosto. A primeira coisa que vi foi a familiar placa do banheiro. Entrei e dei de cara com ela, que me olhou assustada e perguntou o que havia acontecido. Eu chorava e, quando consegui falar, contei envergonhada sobre o recado. Meus olhos estavam cravados no chão. Ela ficou alguns segundos em silêncio, talvez pensando no que dizer diante de uma situação dessas. Em seguida lentamente me virou até que eu ficasse de frente para o espelho que cobria a metade da parede. Ergueu meu queixo até que meus olhos, avermelhados, encarassem a imagem refletida. Então ela me disse que cada pessoa tem a própria beleza e que é isso o que nos dá um toque de peculiaridade. Disse que cada um era belo a seu modo e que só nos restava ter pena de quem fazia aquele tipo de piada sem graça. Eu me acalmei aos poucos e nós voltamos pra sala de aula. 



No dia seguinte ela discretamente me chamou no canto e tirou um embrulhinho do bolso. Era um presente! Eu abri e me deparei com um batom, o primeiro da minha vida. Ela disse logo, antes que ficássemos sem graça pela ocasião, que era um batom caramelo, estavam usando muito. O nome da cor era Beso. Daquele dia em diante não foi somente a minha boca que aquele batom coloriu. Algo que não sei explicar operou-se em mim. Era como se a cada vez que eu passasse o batom, imediatamente me tornasse outra pessoa. Até me achava parecida com ela. Quando terminamos o Ensino Médio, entrei num curso profissionalizante de maquiagem e apaixonei-me por este ofício de tal maneira que fiquei excelente nele. E sempre que vou maquiar alguma mulher eu faço com que ela olhe no espelho e veja sua beleza. Antes de iniciar a pintura é como se eu olhasse em cada rosto o meu próprio recriado naquela cena do banheiro da escola. Lembro então de cada palavra e sei que cada mulher é bela à sua maneira. Penso que cada face é uma obra de arte, inclusive a minha.


Isloany Machado

 Escrito em 18 de junho de 2012.

Um comentário:

  1. Buenisimo! esta menina fez eu lembrar de mim quando menina, não pergunta quando! hehe

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