Eu estava tentando ler,
mas de repente ela invadiu minha memória e não saiu mais. Tive que deixar o
livro de lado e falar sobre aquela recordação que pedia insistentemente para
ser escrita. Cursávamos o Ensino Médio. Eu me recuso a dizer que ano era. Não
que isso tenha muita importância, porque uma história recontada sempre carrega
um tom de ficção.
Eu era adolescente.
Àquela época, ser adolescente talvez fosse mais fácil porque ainda estávamos
livres das escovas de chocolate, marroquinas, inteligente, etc. Naquele tempo,
chocolate era um doce com o qual nos empanturrávamos sem culpa; marroquina era
uma mulher nascida em algum lugar chamado Marrocos; e inteligente era um
adjetivo que usávamos para falar dos nerds da classe (nunca na
frente deles, é claro).
Enfim, são as
possibilidades da língua e da tecnologia estética avançada. Hoje as pessoas
aprendem línguas estrangeiras em um único, ou melhor, em vários frascos
de shampoo: “For oil roots and dry ends”. E o que dizer dos
cremes faciais? “Clinical advanced plus –
oil control”; “Soin de comblement anti-rides fermeté intensif – formule
reforcée”. Quem precisa pagar curso de línguas? Bom, eu
estava falando da minha adolescência. Havia na turma uma garota bem diferente
de mim. Na verdade, até hoje eu não sei o quanto éramos diferentes. Eu tinha o
cabelo da cor de um cesto de palha envernizado: nem claro, nem escuro. A
textura também era de palha. Era um crespo quebradiço cujos cacos caíam sobre
meus ombros. Nosso uniforme do colégio era uma camisa branca e, em intervalos
regulares, eu batia a mão nos ombros para tirar o acúmulo de pedaços de cabelo.
Aprendi a fazer isso de forma quase imperceptível, pelo menos era o que eu
achava.
Ela tinha os cabelos
cacheados, de um castanho reluzente, que desciam pelo meio das costas,
inquebráveis. Naquela época eu morava com minha avó que, com seus 78 anos, era
muito pobre e tínhamos que fazer milagre para passar o mês. Ela não parecia ser
rica, mas dava pra ver que tinha a pele nutrida por todas aquelas vitaminas que
dizem fazer bem pras queratinas e elastinas. Meu olhar era sempre embaçado,
triste, baixo e embargado por uma lágrima iminente, vesúvica. Eu me parecia com
Macabéa, a personagem de Clarice Lispector em A Hora da Estrela, “tinha um
olhar de quem tem uma asa ferida”. Seu rosto era marcado por olhos vivos,
ávidos, brilhantes e sorridentes. Os meus lábios eram grossos, como aqueles das
atrizes famosas, que dizem ser bom de beijar, tanto que as mulheres pagam caro
pra ter iguais. Apesar disso, eram pálidos e denunciavam uma latente anemia. Os
dela eram mais finos, mas irrequietos, falantes. Sempre com algum colorido que
puxava pros tons marrons. Todas as vezes que olhava pra ela, minha visão era
trespassada pela linha branca de seus dentes que estavam sempre à mostra num
sorriso largo. Meu nariz era calombudo, o dela, milimetricamente desenhado. Ela
possuía já naquela idade os ardis da mais sedutora feminilidade. Sabia fazer
caras e bocas para encantar os meninos. O que na literatura balzaquiana é
chamado de “coqueteria”. Eu era seca, não só de corpo, mas de toda e qualquer
mascarada de feminilidade. Não éramos amigas, nem inimigas.
Mas um dia
aconteceu um episódio que marcou profundamente os meus dias. A cada bimestre
era publicado o jornalzinho do grêmio estudantil. Nele havia uma seção de
recadinhos românticos e, em uma das publicações, soube que havia um recado pra
mim. Foi aí que meu coração deu pinotes, senti pela primeira vez que minhas
maçãs do rosto estavam coradas. Um fiapo de saúde desenhou-se em minha face
seca. A palpitação foi maior do que a que eu sentia ao avistar Henrique, o
garoto do terceiro ano de quem eu gostava. Mas era um gostar com sabor de chá
morno porque eu não achava que um dia ele pudesse sequer me olhar, e foi por
ter acreditado sempre nessa impossibilidade que senti o peito arrebentando de
expectativa, pois pensei que pudesse ser dele. Desci as escadarias correndo
para alcançar o mural do grêmio que parecia estar a léguas de mim. Quando
cheguei, deparei-me com um recado que tive de ler e reler:
Oi Selminha!
O chão rodou sob meus
pés, as luzes ficaram cem vezes mais fortes a ponto de quase me cegarem. Saí
correndo dali sem saber minimamente pra onde ia. Os meus lábios pálidos tremiam
e o ar, em turbulência por causa da minha corrida, fazia gelar as lágrimas que
corriam horizontalmente no meu rosto. A primeira coisa que vi foi a familiar
placa do banheiro. Entrei e dei de cara com ela, que me olhou assustada e
perguntou o que havia acontecido. Eu chorava e, quando consegui falar, contei
envergonhada sobre o recado. Meus olhos estavam cravados no chão. Ela ficou
alguns segundos em silêncio, talvez pensando no que dizer diante de uma
situação dessas. Em seguida lentamente me virou até que eu ficasse de frente
para o espelho que cobria a metade da parede. Ergueu meu queixo até que meus
olhos, avermelhados, encarassem a imagem refletida. Então ela me disse que cada
pessoa tem a própria beleza e que é isso o que nos dá um toque de
peculiaridade. Disse que cada um era belo a seu modo e que só nos restava ter
pena de quem fazia aquele tipo de piada sem graça. Eu me acalmei aos poucos e
nós voltamos pra sala de aula.
No dia seguinte ela
discretamente me chamou no canto e tirou um embrulhinho do bolso. Era um
presente! Eu abri e me deparei com um batom, o primeiro da minha vida. Ela
disse logo, antes que ficássemos sem graça pela ocasião, que era um batom
caramelo, estavam usando muito. O nome da cor era Beso. Daquele
dia em diante não foi somente a minha boca que aquele batom coloriu. Algo que
não sei explicar operou-se em mim. Era como se a cada vez que eu passasse o
batom, imediatamente me tornasse outra pessoa. Até me achava parecida com ela.
Quando terminamos o Ensino Médio, entrei num curso profissionalizante de
maquiagem e apaixonei-me por este ofício de tal maneira que fiquei excelente
nele. E sempre que vou maquiar alguma mulher eu faço com que ela olhe no
espelho e veja sua beleza. Antes de iniciar a pintura é como se eu olhasse em
cada rosto o meu próprio recriado naquela cena do banheiro da escola. Lembro
então de cada palavra e sei que cada mulher é bela à sua maneira. Penso que
cada face é uma obra de arte, inclusive a minha.
Isloany Machado
Escrito em 18 de junho
de 2012.
Buenisimo! esta menina fez eu lembrar de mim quando menina, não pergunta quando! hehe
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